Gestão Escolar na Era da Escola-Agência: Políticas Públicas, Racionalidade Técnica e Resistência Pedagógica

Carolina Paula de Faria e Renata Aceituno Souza

A escola pública contemporânea encontra-se imersa em uma encruzilhada histórica. Amplia-se cada vez mais o número de funções sociais que ela precisa assumir: além de ensinar, a escola alimenta, acolhe, protege, escuta, orienta e substitui, em muitos casos, outras políticas públicas ausentes. Enquanto isso, há uma demanda crescente por retornos quantitativos, eficácia gerencial e alcance de metas, enquadrados por plataformas digitais e relatórios técnicos que visam medir a eficácia escolar por meio de avaliações.

Nesse cenário, ela deixa de ser apenas um espaço de ensino formal e passa a atuar como uma agência multifuncional (ROGGERO, 2020), convocada a responder simultaneamente por demandas educacionais, sociais, culturais, assistenciais e emocionais, muitas vezes sem os recursos financeiros, humanos e estruturais compatíveis com tal complexidade. Isso gera um dilema estrutural, que se expressa de forma particularmente intensa no campo da gestão escolar pública.

Teoria Crítica e as perguntas que importam

Articulamos os desafios da gestão escolar com os aportes da Teoria Crítica, compreendendo que pensar criticamente a educação é uma forma de agir politicamente no presente. No início de sua aula sobre Marcuse, o filósofo Christian Dunker lança uma provocação: “Você faz gestão da sua vida?” A pergunta, embora voltada ao indivíduo, ressoa fortemente na esfera pública: que tipo de gestão temos feito nas escolas? Que escolhas sustentam nossas ações?

Em sua aula inaugural de sociologia, Adorno observa que “quanto mais se compreende da sociedade, tanto mais difícil é tornar-se útil nela”. Essa frase revela o conflito entre consciência crítica e funcionalidade técnica. A gestão escolar que compreende a complexidade do mundo não pode se restringir à aplicação mecânica de regras, ela precisa intervir com sentido, com intencionalidade e com compromisso ético.

Ainda segundo Adorno, preocupar-se com questões sociais não garante, por si só, uma sociedade melhor ou mais justa. Ele afirma que é absurdo pensar que problemas fundamentais da vida humana não sejam resolvidos por motivações sociais, lembrando que mesmo questões aparentemente externas à sociedade estão socialmente mediadas. Ou seja, não basta que as políticas públicas tenham objetivos nobres é preciso que sua implementação seja crítica, consistente e conectada com as reais necessidades da comunidade escolar.

A obra Investigação Empírica e Teoria Social, de Horkheimer, também nos oferece uma chave de leitura importante: a tensão entre análise qualitativa e quantitativa continua sendo um desafio atual e urgente para a educação. Quando o planejamento escolar é reduzido a planilhas, metas e dados numéricos, perde-se a dimensão qualitativa da experiência pedagógica. E, no entanto, “uma boa técnica pode servir à opressão”, como advertia Horkheimer.

Em Educação para quê? Adorno retoma esse debate ao afirmar que a democracia não deve apenas funcionar, ela deve, sobretudo, ser pensada criticamente em seu conceito. E isso exige sujeitos emancipados, capazes de refletir sobre o mundo e intervir nele. Educação, para ele, só é autêntica quando promove autonomia:

“Educação é, em si, emancipação. Não pode haver verdadeira educação que não vise à autonomia dos sujeitos.” (Adorno, 1995)

Nesse sentido, o planejamento educacional, quando guiado apenas por métricas, falha na sua finalidade formativa. O uso quantitativo de dados impacta diretamente a qualidade dos processos educativos, pois o que se planeja em números influencia o que ensina, como ensina e por que ensina.

E a gestão, para quê?

A gestão escolar enfrenta um cenário cada vez mais desafiador, marcado tanto pelas transformações que atingem a própria escola, quanto pelas exigências de implementação cotidiana das políticas públicas. Assim, administrar os recursos públicos deixou de ser uma atividade puramente técnica para se tornar um exercício de criatividade, mediação e resistência, diante das múltiplas carências enfrentadas pelas instituições. Os recursos disponíveis são, em geral, escassos e fragmentados. Mesmo as políticas públicas bem-intencionadas, muitas vezes não se concretizam de forma efetiva na realidade das escolas, ficando o gestor responsável por administrar limitações, manter o funcionamento institucional e ainda responder a novas funções sociais.

O gestor escolar de hoje é, ao mesmo tempo, educador, administrador, mediador comunitário e operador de políticas públicas. Essa multifuncionalidade revela uma tensão: a escola é valorizada no discurso como solução para problemas sociais, mas enfraquecida na prática pela falta de investimentos, pela sobrecarga funcional e pelo controle burocrático. A gestão é orientada por resultados que impõe uma racionalidade técnico-burocrática que reduz o sentido pedagógico em métricas e indicadores. A razão instrumental, como denunciada por Adorno e Horkheimer, passa a dominar a organização escolar, sobrepondo-se à dimensão formativa e crítica da educação. A escola é convertida em uma máquina de dados, o gestor em gerente de metas e o professor em executor de programas.

Como manter a integridade do projeto político pedagógico diante dessa racionalização? Como preservar a função social sem se submeter ao esvaziamento pedagógico? Como resistir à lógica da produtividade sem negligenciar a responsabilidade pública da escola?

Essas perguntas são mais do que retóricas. Demandam pesquisa, reflexão e, sobretudo, práxis. A gestão escolar precisa ser entendida como espaço de ação crítica e transformação social. Não basta funcionar bem, é preciso funcionar com sentido. Como ensinava Paulo Freire, “a prática sem teoria vira ativismo, e a teoria sem prática vira verborragia”.

A Teoria Crítica nos convida a manter esse equilíbrio: pensar e agir com profundidade, buscando resistir à lógica instrumental e reumanizar a educação.

Educação e gestão como resistência

A escola pública, em meio à crise social e à precarização das políticas públicas, continua sendo um dos últimos redutos de esperança coletiva. Seu potencial emancipador não está garantido, precisa ser construído cotidianamente. E a gestão escolar, nesse processo, tem papel fundamental: não como engrenagem de um sistema tecnocrático, mas como força viva de mediação entre necessidades reais e possibilidades transformadoras.

Gestão, aqui, não é apenas comando ou eficiência: é práxis crítica, compromisso com o coletivo, escuta da comunidade, defesa da dignidade humana e articulação entre política e pedagogia. Resistir, no cotidiano da escola pública, é recusar a naturalização da escassez, da padronização e da obediência cega às métricas.

Como afirmava Adorno, mais do que adaptar os sujeitos à sociedade, a educação deve prepará-los para transformá-la.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor W. Introdução à Sociologia. São Paulo. Unesp. 2008.

________Educação e Emancipação.Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1995

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro. Jorge Editores Zahar. 1997.

DUNKER, Christian. Herbert Marcuse | Christian Dunker | Falando nisso. Youtube, data de publicação 18 de novembro de 2023. Disponível em: Herbert Marcuse | Christian Dunker | Falando nIsso. Acesso em 24 de março de 2025.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra. 2020

GOMES, A . et al. Políticas Públicas em Educação e Práticas Educativas. Campinas. Pontes. 2024.

ROGGERO, Rosemary (org.). Financiamento da educação básica: e a escola como agência multifuncional na sociedade neoliberal. Curitiba: BT Acadêmica, 2020.

Profª Carolina Paula Mestranda em Educação pela Universidade Nove de Julho, como também Contadora e Professora, a educação sempre esteve comigo, de maneira bastante esporádica, como aulas de música, informática e cálculos, mas foi em 2022 que o desejo de estar na sala de aula veio com força. Amante da Administração Pública, decidi contribuir com a sala de aula o que consegui absorver em 17 anos de carreira. Atualmente Contadora do Poder Legislativo e Profª do ensino técnico.

Profª Renata Kelly Coelho Aceituno Souza
Atua como vice-diretora na Prefeitura de Santo André, com experiência em diferentes etapas e modalidades da educação. Sua trajetória é marcada pela sensibilidade e pela crença de que a educação tem o poder de transformar vidas. Defende a importância da escola pública de qualidade e a construção de uma gestão escolar democrática, pautada no diálogo, na participação e no compromisso coletivo com uma educação mais justa e humanizada.

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