Qual o tipo de cidadania almejamos como objetivo na escola?
Evidentemente a aptidão para se orientar no mundo é impensável sem adaptações. Mas ao mesmo tempo impõe-se equipar o indivíduo de um modo tal que mantenha suas qualidades pessoais. A adaptação não deve conduzir à perda da individualidade em um conformismo uniformizador. (ADORNO, 1995 p. 144)
A discussão sobre a formação para a cidadania exige mais do que boas intenções ou respostas prontas. O termo “cidadania”, amplamente utilizado em discursos pedagógicos, carrega um conteúdo normativo e político que, quando não submetido à crítica, corre o risco de se tornar um fetiche conceitual — um ideal aparentemente neutro e universal que oculta formas sutis de dominação. Como aponta Adorno (1996), conceitos como “educação”, “democracia” ou “liberdade” podem ser esvaziados de sua dimensão histórica e transformados em fórmulas fixas e aparentes, tratadas como verdades universais. Com isso, disfarçam as relações sociais e os conflitos de interesse que lhes deram origem. Nesse sentido, não se trata aqui de oferecer uma definição fixa de cidadania, mas de problematizar os modos como ela é instrumentalizada no contexto escolar, frequentemente reduzida a um dispositivo de conformação social sob a aparência de virtude.
Formar para a cidadania, em muitos discursos pedagógicos, tem significado ensinar boas maneiras, cumprir regras, participar de atividades e repetir slogans éticos. Mas esse modelo esvaziado de sentido produz o que podemos chamar — fazendo analogia com a pseudocultura promovida pela indústria cultural descrita por Adorno & Horkheimer (1985) — de pseudocidadania: uma forma de simular participação e autonomia, enquanto se reproduz a lógica da obediência e da adaptação. O sujeito aprende a se comportar como cidadão, mas não a interrogar os fundamentos da sociedade em que vive. A aparência de liberdade substitui a crítica; a estética da convivência apaga a tensão social.
A cidadania, enquanto ideal de convivência democrática, de fato exige que o sujeito compreenda as regras sociais. Mas há um limite sutil entre formar para o convívio e adestrar para o conformismo. Como discutem Adorno e Becker (1995). É necessário orientar o sujeito para a vida em sociedade, mas isso não pode implicar em apagamento da individualidade. A adaptação sem consciência transforma-se em submissão, e a formação perde sua potência emancipadora.
A escola é um cenário emblemático da tensão entre reprodução e emancipação. Como destaca Adorno (1996), as instituições sociais são criadas pelos próprios indivíduos, mas tendem a se autonomizar e a se impor como se fossem instâncias naturais e inevitáveis. Esse processo — que ele associa à formação de uma segunda natureza — ajuda a compreender o papel da escola na formação de condutas e na reprodução dos valores dominantes. Embora a escola historicamente funcione como mecanismo de conformação, moldando os indivíduos de acordo com os imperativos da ordem vigente, a mesma instituição pode, sob certas condições, tornar-se espaço de resistência. É nela que surgem, ainda que de forma fragmentária, as primeiras experiências de encontro com a diferença, de conflito ético e de elaboração coletiva do pensamento. E é justamente nessa ambivalência — entre socialização e crítica — que reside sua relevância para a formação da cidadania crítica, desde que tais experiências sejam conscientemente cultivadas.
Essa ambiguidade da escola está diretamente conectada à reflexão de Adorno & Horkheimer (1985) sobre o esclarecimento idealizado pelos iluministas. O projeto iluminista foi concebido como uma promessa de libertação: ao substituir o mito pela razão, os homens poderiam emancipar-se do medo e da dominação irracional. No entanto, à medida que a razão se converteu em instrumento de cálculo, controle e organização técnica do mundo, ela passou a reproduzir novas formas de dominação sob a aparência de progresso. Como expressam os Frankfurtianos – referente ao esclarecimento:
No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objectivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo da desgraça triunfal” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 5)
Ou seja, o esclarecimento traído por sua própria lógica técnica não garante a autonomia — pelo contrário, tende a consolidar o conformismo por meio da racionalidade funcional.
Contudo, essa crítica não equivale a um abandono da razão. Adorno não propõe a recusa do esclarecimento, mas sua superação dialética. É justamente por meio da razão que a crítica pode se constituir — ainda que não como produto automático dela. O que está em jogo é a qualidade dessa razão: se ela for instrumental, forma sujeitos adaptados; se for reflexiva, abre espaço para o pensamento crítico. A formação cidadã, nesse sentido, exige a apropriação consciente da razão, não para repetir o mundo como ele é, mas para questioná-lo, desvelar suas contradições e reconstruir os fundamentos éticos que a razão técnica dissolveu — como liberdade, justiça, verdade e humanidade.
Esse paradoxo reaparece, até mesmo, nas práticas escolares ditas progressistas. No diálogo entre Becker & Adorno (1995), eles mencionam que até mesmo métodos como os da pedagogia Montessori, quando esvaziados de sentido e institucionalizados de maneira mecânica, podem se tornar instrumentos de adaptação. A “liberdade” oferecida pela escolha de atividades previamente definidas pode ser apenas mais uma forma de controle. A autonomia, nesse modelo, torna-se um comportamento programado, não uma conquista da consciência. A criança é conduzida a agir como se fosse livre, mas dentro de um campo já delimitado pela autoridade externalizada.
Esse processo de simulação da autonomia caracteriza a “pseudocidadania”. O sujeito é educado para comportar-se bem, respeitar regras, parecer participativo — mas jamais é desafiado a pensar por que o mundo é como é, e o que nele precisa ser transformado. A escola promove uma ética estética: em vez de formar sujeitos históricos, forma sujeitos performáticos.
Essa lógica reproduz o funcionamento da indústria cultural, como exposto por Adorno & Horkheimer (1985), em Dialética do Esclarecimento. A cultura, quando convertida em produto, oferece escolhas padronizadas sob a aparência de liberdade. O sujeito acredita estar escolhendo entre formas diversas, mas todas reforçam o mesmo conteúdo ideológico. A escola, ao transformar a cidadania em um pacote de competências, repete essa lógica: simula a formação do sujeito autônomo, mas limita sua ação à conformidade com o que já está dado.
Mesmo assim, a crítica é possível. Adorno afirma que “… o centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita.” (Adorno, 1995, p. 136). Essa afirmação radical reconfigura o sentido da formação: educar não é apenas transmitir valores, mas criar condições para que o sujeito reconheça o sofrimento, a injustiça e a violência como resultados históricos e evitáveis. Não se trata de idealizar uma educação neutra ou apolítica, mas de sustentar uma formação que ajude o sujeito a pensar o mundo em sua complexidade — e a agir sobre ele com responsabilidade ética.
Formar para a cidadania, assim, é sustentar uma tensão permanente entre o convívio e o confronto, entre o pertencimento e a crítica. Não se trata de formar o “bom cidadão” que se encaixa nas estruturas, mas de formar sujeitos capazes de transformá-las. Isso exige um compromisso com a negatividade, com o desconforto, com o pensamento que não se acomoda.
Essa formação não se realiza por meio de receitas pedagógicas, metodologias padronizadas ou plataformas automatizadas. Ela se realiza na relação, na linguagem, na escuta, na experiência e no conflito. A cidadania crítica não é uma competência a ser ensinada, mas uma possibilidade a ser construída no embate com a realidade. E é nesse embate que a escola pode, se assim escolher, deixar de ser aparelho de domesticação e tornar-se espaço de resistência e criação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
ADORNO, Theodor W. Introdução à sociologia. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: UNESP, 1996.
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

